Entrevista com Prof. Joaze Bernardino-Costa

 

 Prof. Joaze Bernardino-Costa
Departamento de Sociologia

 

  1. Trajetória acadêmica e vivência negra da UnB.

Sou prata da casa da UnB. Toda minha formação foi aqui: graduação, mestrado e doutorado. Estudei na UnB da década de 90, uma universidade muito diferente da atual universidade no que diz respeito ao quesito diversidade racial. Era um tempo, sobretudo nas Ciências Humanas, em que vivíamos sob o pacto do mito da democracia racial e da fábula das três raças. Portanto, mesmo que o movimento e intelectuais negros denunciassem as discriminações raciais e demonstrassem o peso estrutural da raça na composição da desigualdade social no Brasil, eles e elas eram tidos como tendenciosos, insuficientemente científicos e raivosos ou coisa que o valha.

Comecei a pesquisar e escrever a respeito do que tenho chamado de uma “sociologia do racismo” no meu mestrado, quando defendi uma dissertação sobre as propostas de ações afirmativas que estavam sendo debatidas no país na segunda metade da década de 1990. Nesta época ocorreu a histórica Marcha do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, aqui em Brasília, onde ao final foi apresentada pelo Movimento Negro, ao então presidente Fernando Henrique Cardoso, uma proposta de enfrentamento do racismo. FHC, mesmo que timidamente, começou a encaminhar a discussão no âmbito do governo federal. Sendo assim, minha dissertação de mestrado reflete sobre aquele momento. Era um momento em que ainda precisávamos definir o que é ação afirmativa. Hoje a noção já é plenamente conhecida.

A partir da minha dissertação me projetei nacionalmente para discutir desigualdade raciais e ações afirmativas. Integrei o grupo de pesquisadores/as e professores/as agraciados com projetos dentro do Programa Políticas da Cor na Educação Brasileira (PPCor) da UERJ, que era coordenado pelo Pablo Gentili e Emir Sader. Entre os responsáveis pelos projetos do PPCor, tínhamos ativistas/intelectuais importantes, tais como: Nilma Lino Gomes, Ex-Ministra da Seppir, Valter Silvério (UFScar), Jocélio Telles e Paula Barreto (UFBA) etc. Então formamos um grupo entre 2001 e 2005  que começou a acompanhar o debate que estavam acontecendo nas universidades brasileiras de norte a sul. Foi um   momento muito    rico e formativo.

 

Naquela ocasião eu  já era professor da Universidade Federal de Goiás e coordenava o projeto Passagem do Meio, um curso de permanência e preparação dos/as estudantes de graduação para entrarem na pós-graduação. Foi um projeto muito bem sucedido. Temos hoje alguns/algumas professores/as em algumas universidades federais que fizeram parte do Passagem do Meio.

Por circunstâncias da vida, em 2009, voltei para a UnB, como professor do Departamento de Sociologia. Ao retornar à minha alma mater, como se diz, passei a atuar fortemente na pós-graduação, orientando diversos/as estudantes interessados em pesquisar temas que tem a raça como categoria central. Ao mesmo tempo, fui convidado pelo então reitor José Geraldo, a coordenar o Centro de Convivência Negra e depois assessorá-lo nos temas ligados às ações afirmativas. Logo na sequência, por volta de 2012, tive um projeto  junto a Fundação Carlos Chagas e Fundação Ford aprovado. Trata-se do Pós-Afirmativas, que consistia na preparação de estudantes negros/as para entrarem na pós-graduação. Também foi um projeto muito exitoso. Inúmeros estudantes entraram no mestrado e no doutorado em diversos PPGs da UnB e outras universidades.

Um parêntese: o Coletivo Zora Hurston, de estudantes da Antropologia, está com um projeto preparatório para os processos seletivos do mestrado e doutorado muito semelhantes ao Pós-Afirmativas. 

Por toda essa minha trajetória, dialogando com professores/as e estudantes da UnB, bem como ativistas sociais  e intelectuais para além da Universidade de Brasília, tive a honra de integrar a comissão que elaborou a política de ações afirmativas na Pós-Graduação da UnB para estudantes negros/as, indígenas e quilombolas, que foi aprovada em reunião histórica do CEPE no dia 04 de junho de 2020.

 

  1. Como se deu o processo de aprovação da política de cotas na UnB e como ela se encaminha à implantação? Que atores atuaram no conjunto dos trabalhos?

O processo de discussão da Política de Ações Afirmativas na Pós-graduação da Universidade de Brasília inicia-se no segundo semestre de 2017.

Naquela ocasião fui convidado pela Decana de Pós-Graduação, professora Helena Shimizu, para compor uma Comissão para elaborar uma política de ações afirmativas para a pós-graduação. Integravam a Comissão o professor Bergman Ribeiro, do Instituto de Biologia, e a professora Renísia Felice Garcia, da Faculdade de Educação. A motivação para a constituição daquela comissão tinha sido um Termo de Ajuste de Conduta do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios no âmbito da análise dos casos de fraude no ingresso nos cursos de graduação da UnB. Então, além de solicitar providências para que as denúncias fossem apuradas, solicitava também que fossem adotadas comissões de heteroidentificação para que novas fraudes não ocorressem e instigava a Administração Superior da universidade a enviar esforços para implementar uma política de cotas na pós-graduação. Assim, este pedido do MPDFT se juntava a demandas que já vínhamos discutindo no âmbito da universidade, tal qual podemos verificar em alguns artigos que eu e outros escrevemos, bem como pode ser visto no próprio Plano de Metas e Integração Étnico-Racial aprovado em 2003, quando se discutiu e aprovou a política de cotas para negros na Universidade de Brasília no âmbito da graduação. Naquela momento  já se falava da necessidade da política de cotas abarcar também a pós-graduação.

 Aquela primeira Comissão não pôde avançar muito devido ao cenário nacional em 2018, marcado pelas eleições presidenciais. Foi um ano de desmobilização. Passado algum tempo após a posse, já em 2019, houve uma mudança no Decanato de Pós-Graduação, que passou a ser dirigido pela Professora Adalene Moreira. Esta, por sua vez, nomeou uma nova Comissão, composta por mim, professora Antonádia Borges, Diretora da Pós-Graduação e professora do Departamento de Antropologia, e Maria Aparecida Chagas Ferreira, Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental cedida para trabalhar na UnB. Então, esta nova comissão começou a discutir a proposta com diversos outros/as professores/as, estudantes de graduação e pós-graduação e servidores/as técnico- administrativos/as da Universidade. A proposta passou por inúmeros aprimoramentos. Também dialogamos com professores de outras IES, bem como outros especialistas em política públicas de promoção da igualdade racial e enfrentamento do racismo.

Em fevereiro deste ano (2020), apresentamos a proposta pela primeira vez na Câmara de Pesquisa e Pós-Graduação do Decanato de Pós-Graduação (CPP/DPG) e distribuímos a proposta para todos os Programas de Pós-Graduação da universidade. Demos mais de dois meses para que a proposta fosse discutida. Assim, no início de abril recebemos as contribuições dos PPGs e aperfeiçoamos a proposta. No dia 17 de Abril a proposta foi novamente apresentada na CPP/DPG, quando foi aprovada quase por unanimidade, tendo, se não me engano, apenas quatro abstenções.
Em seguida, decidimos levar a proposta ao CEPE, pois uma decisão desta magnitude precisava ser aprovada no CEPE ou Consuni. Então no dia, 04 de junho, tivemos mais uma reunião histórica no CEPE, com a aprovação unânime da Resolução 044/2020.

Foi uma reunião bonita. Algumas das pessoas presentes na reunião do CEPE lembraram que há 17 anos também estavam presentes na reunião que tinha aprovado a política de cotas na graduação.

 

  1. Em que consiste e qual o alcance dessa política?

Podemos resumir a proposta em três eixos centrais:

1) Acesso: no mínimo 20% das vagas de todos os processos seletivos da Pós-Graduação (mestrado e doutorado) para candidatos/as negros, no mínimo 01(uma) vaga adicional em todos os processos seletivos para indígenas e outra para quilombolas;

2) Comissão de Heteroidentificação: para que não haja desvio de finalidade da política foi também aprovada a criação das Comissões de Heteroidentificação para confirmar a autodeclaração do/a candidato/a negro/a e para validar a documentação apresentada por candidatos/as indígenas e quilombolas e

3) Permanência: a distribuição prioritária das bolsas para indígenas, quilombolas e candidatos autodeclarados e heteroidentificados como negros; nesta ordem.

É importante destacar o segundo eixo: a existência da Comissão de Heteroidentificação. Esta era uma reivindicação antiga de especialistas do enfrentamento ao racismo. Esta Comissão, como dito acima, visa sobretudo evitar os casos desgastante de fraudes com os quais tivemos que lidar nos últimos anos e que culminou na expulsão de quinze estudantes da universidade e a cassação de dois diplomas.

Estas comissões confirmam a autodeclaração racial de maneira dialógica, isto é, o processo não se restringe a uma autodeclaração unilateral do/a candidato/a (que poderia, em caso de má fé, fraudar a política), nem também se restringe a uma heteroidentificação unilateral de uma comissão. A essência deste processo é o diálogo e o reconhecimento fenotípico do/a candidato/a como negro/a.  Esta é uma experiência bem sucedida que tem ocorrido em diversos concursos públicos e processos seletivos em universidades. Também ressalto que a política já está em vigor desde o dia 04 de junho de 2020 e vigorará por 10 anos, quando será reavaliada.

 

  1. Há alguma relação da política de cotas na Pós-graduação com a da Graduação?

Sem dúvida. Graduação e Pós-Graduação estão integradas. Naturalmente desde a adoção da política de cotas para negros na graduação em 2003, um número crescente de estudantes negros/as começou a chegar à pós-graduação e muitos entraram sem a necessidade de um política de ações afirmativas na pós-graduação. Entretanto, a Política de Ações Afirmativas na Pós-Graduação pode ser lida a partir de outro raciocínio: não se trata somente de dizer que os/as candidatos/as negros/as requerem uma reserva de vaga, mas se trata de dizer que principalmente os PPGs e a Universidade como um todo precisam dos estudantes negros/as, indígenas e quilombolas. Neste sentido, a Política de Ações Afirmativas pode ser lida não somente como uma abertura dos programas a esses/essas candidatos/as, mas como uma abertura epistêmica da pós-graduação e da universidade para novos e outros saberes que a população negra, indígena e quilombola detém.

Esta é uma realidade mais evidente nas Humanidades mas que também pode se concretizar em outras áreas de conhecimento. Negros/as, indígenas e quilombolas não são tábulas rasas, sem experiência e sem trajetória de vida, ao contrário, possuem suas historicidade - muitas vezes coletivas. Portanto, ao se abrir para esses estudantes, a Universidade de Brasília pode ganhar com um conhecimento múltiplo e diverso. Isto já ocorre em alguns PPGs - como o de Sociologia, do qual faço parte - em que os/as estudantes negros/as trouxeram novas temáticas para serem refletidas e estudadas e estão promovendo mudanças significativas nas abordagens teórico-metodológicas até então adotadas. A universidade ganha com este processo. A partir da arregimentarão de um corpo discente diverso, a pesquisa também se diversifica e ganhamos com as riquezas dos múltiplos e diversos saberes.

Entretanto, chamo a atenção para outra realidade da relação entre graduação e pós-graduação: uma diferença substancial no processo de como as politicas ocorrem na pós-graduação e na graduação. Na pós-graduação aprovamos as Comissões de Heteroidentificação, enquanto na graduação não existe a previsão de tais comissões. Teremos que abrir o debate na Universidade para que a graduação também adote as Comissões de Heteroidentificação por uma simples razão: evitar eventuais casos de fraudes. Não há nada mais negativo - efetivamente uma agenda negativa - do que ter que expulsar estudantes da universidade ou cassar diplomas. O caminho para evitar isto, sabemos qual é: a adoção das Comissões de Heteroidentificação.

 

 

  1. Que papel o Centro de Convivência Negra pode desenvolver nesse processo?

O Centro de Convivência Negra pode desempenhar um papel importante, assim como tem feito desde a sua criação no início dos anos 2000. Ele pode se engajar na discussão do aperfeiçoamento e implementação da política. Pode ser este  espaço físico de congregação de professores/as e estudantes para discutir as questões ligadas à questão racial na UnB.

 

  1. Como podemos ter acesso à íntegra do documento aprovado? Ele já está sendo aplicado?

Os documentos são públicos. Estão na página da Universidade. O Decanato de Pós-Graduação constituiu uma Comissão de Acompanhamento da Política de Ações Afirmativas da UnB, que está sob a minha presidência. Estamos preparando algumas instruções normativas e outros documentos explicativos de como a política deve ser adotada, bem como criando as condições legais e físicas para que a Comissão de Heteroidentificação funcione. É natural que um/a professor/a que jamais pensou em ações afirmativas tenha dúvidas de como implementá-las, portanto, estamos criando um documento chamado de Orientações Técnicas, que explica de maneira didática o que um/a coordenador/a de pós-graduação deva fazer para implementar a Resolução CEPE 044/2020. Em breve, todo este material será publicizado para toda comunidade universitária.

  1. Que mais gostaria de destacar?

Destacaria que a aprovação da Política de Ações Afirmativas na Pós-Graduação da UnB foi uma grande vitória da causa antirracista. Se em 2003, quando aprovou sua política de cotas na graduação a UnB se projetou como uma protagonista neste debate no Brasil, hoje com a Política de Ações Afirmativas na Pós-Graduação a UnB novamente se coloca com uma protagonista no cenário nacional. Algumas universidades, é verdade, já tinham adotado tais políticas nas suas pós-graduações, entretanto, nenhuma delas possui o peso e a importância da UnB. Certamente o debate está sendo recolocado em diversas universidades pelo país afora, tenho sido contactado por professores/as de outras universidades do país. Esta é mais uma oportunidade de colocar a UnB no centro do debate e, quem sabe, nossa experiência pode, tal qual um farol, iluminar processos decisivos de outras universidade do país rumo a uma educação e universidade mais inclusiva e democrática, capaz efetivamente de pensar os problemas nacionais .

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